Não cheguei primeiro | Conteúdo exclusivo, plágio e outras reflexões

21 fevereiro 2019

Quando andava na escola primária, uma das coisas que a professora fazia com frequência, era distribuir desenhos por pintar e deixar que os preenchêssemos da forma mais criativa - e preferencialmente silenciosa - possível. Lembro-me de um em particular, na altura da Páscoa, onde figurava um coelho com uns ovos todos catitas, atados com laços enormes, mesmo a meu gosto. 

Sempre me senti tão intimidada quanto entusiasmada pelos começos - o uso de um caderno novo, a primeira risca a marcador num desenho, a primeira linha de um post para o blog - e ali não era excepção. Ao fim de algum tempo ainda estava eu a olhar para a folha a decidir se haveria de usar massa, confettis, papel de celofane, ou tudo junto, e foi quando vi o desenho da Inês.
Caramba. 
Ela estava a afiar lápis de cor e a usar as raspas para preencher o desenho. 
Com 7 anos, aquilo parecera-me a coisa mais genial, mais criativa, mais ousada e vanguardista de sempre. Ela era o Picasso da Escola da Serpente, o ex-líbris da produção artística e plástica da sala, e eu ali a pensar em usar massas. Estão a perceber o drama? 
Então decidi que iria usar a metodologia da Inês para dar o melhor aspeto possível ao meu coelho. Fui buscar lápis e aguças e comecei a fazer o mesmo procedimento, ultra-satisfeita com o processo. No final, bem orgulhosa, fui mostrar-lhe o resultado e a reação foi bem diferente do que esperava...Ela chorou porque eu lhe tinha roubado a ideia, eu chorei porque estava à espera que ela ficasse contente por ter usado a ideia dela, e a professora perdeu a paz de um momento criativo-silencioso. 
Anyway, isto para dar o pontapé de saída para uma reflexão sobre não chegar primeiro. 

Existe mais do que uma forma de não chegar primeiro em matéria de criatividade e vamos aqui falar de 3 cenários possíveis: 

1) O Coelhos da inspiração

Vamos assumir aqui que depois de tantos milhares de anos de terra a rodar, é muito, mas mesmo muito difícil criar algo inteiramente novo. A quem o faz, os meus mais sinceros parabéns pela proeza de gerar novidade, a quem não o faz, os meus mais sinceros parabéns também, porque é realmente difícil pegar no que já existe e dar um cunho novo.

Não há nada de errado com a utilização das ideias dos outros. Não há mesmo nada de errado em usarmos ideias que foram produtos do trabalho e da imaginação de outros, desde que não as reivindiquemos como nossas e tenhamos sempre em mente que a nossa ideia é resultado de uma construção de legos e que alguém, em algum momento, teve de ter a brilhante ideia de criar os legos.
Não há área - seja na escrita, na cozinha, na pintura, na fotografia, na cerâmica, na construção de drones, no desenho de jogos de tabuleiro, no preenchimento criativo de coelhos da Páscoa - em que não sejamos inspirados e movidos pelo trabalho dos outros. Quando gostamos de uma obra ou de um artista que nos faz mexer qualquer coisa cá dentro, não há nada de imoral em usarmos o trabalho dele como base para fazer algo nosso, com o nosso olhar, com a nossa própria escolha das cores das raspas de lápis a usar.


Quando isto é feito com esta transparência, com esta consciência assumida de segundo lugar do pódio mas ainda assim desfrutando da corrida e parabenizando o vencedor, não se trata de plágio, de imitação ou inveja, mas antes de admiração, respeito e entusiasmo.

Exemplos mais recentes em que usei raspas de lápis dos outros: o projeto Vou Ali e Venho Já, que surgiu o ano passado e sobre o qual podem espreitar SUPER NOVIDADES aqui, foi importado da ideia da Neozelandesa Jaqui Kenny, cujo trabalho artístico com recurso ao google maps nos inspirou a fazer exatamente a mesma coisa, mas em grupo.

2) Coelhos e ideias gémeas

A Elizabeth Gilbert, autora do “Comer Orar e Amar” e do “Big Magic” tem uma teoria engraçada sobre isto nesta última obra. Ela diz que as ideias andam por aí, tipos Coelhos do pó a circular pela casa, e que nós temos o poder de as apanhar e desenvolvê-las. A partir do momento em que nos comprometemos com uma ideia, ela passa a ser nossa e a trabalhar em harmonia connosco para a produção de um trabalho que é meio resultado da nossa dedicação, meio resultado de uma cena mística a que ela chama, precisamente, de Grande Magia. Ela explica que quando não nos comprometemos com uma ideia, ou seja, quando basicamente a deixamos debaixo da cama por tempo indeterminado até termos tempo e disposição para a ir buscar, pode dar-se o caso de ela fugir e ser apanhada por outra pessoa, que se comprometa com ela. Para justificar isso, Gilbert usa o exemplo de um livro que pretendia escrever e que foi a ver e esse mesmo enredo foi publicado por outra escritora que pura e simplesmente não poderia ter acedido aos manuscritos que mantinha nas gavetas do seu escritório. Opiniões à parte sobre esta visão tão inesperada da criação artística, a verdade é que às vezes as pessoas têm as mesmas ideias de uma forma espontânea, não planeada e sem que ninguém tenha copiado intencionalmente o trabalho de outrem.

Eu podia fazer-vos uma lista enorme da quantidade de vezes em que eu fui surpreendida por situações semelhantes, mas vou só partilhar um exemplo. Devia andar no 7º ano, 12 anos, portanto, quando escrevi uma composição para português que terminava com a frase “porque o sonho comanda a vida”. Nas notas da correção da professora vinha uma achega a valorizar o texto por ter referenciado o António Gedeão, mas a alertar para a falta de aspas. Acontece que, à data, eu não fazia ideia de quem ele era, nunca na vida lera nada dele, e seguramente não estava a citá-lo. Recentemente, há umas semanas atrás, voltou a acontecer-me, desta vez com o Afonso Cruz. Mais uma vez senti-me furiosa pela eminência de acharem que eu poderia ter copiado a ideia, quando na verdade, nunca antes lera aquele livro. Partilhei a frustração com o Artur que logo me animou...Afinal de contas, devo estar no caminho certo para que as minhas ideias se encontrem com as do meu escritor favorito :-)



Isto acontece com frequência e a lição a retirar, além do facto de nos devermos comprometer com os coelhos do pó da criatividade e não abandonar ideias debaixo da cama, é que é preciso cautela quando afirmamos que a música X é plágio da Y, que o autor X claramente está a imitar o poema do autor Y, ou até em coisas do dia-a-dia, quando nos parece que a pessoa X quis mesmo comprar aquela mala depois de nos ter visto com ela. Há alturas, e que acredito serem a regra e não a excepção, em que simplesmente temos ideias gémeas, em que duas mentes reúnem um conjunto de inspirações, referências e contextos próximos que resultam em resultados igualmente próximos.

3) Coelhos e plágio

Não há muito a dizer sobre isto. Este é o único cenário em que a partilha de ideias não é positiva, porque simplesmente não é uma partilha. Usar o trabalho de outrem como base para o nosso, com plena consciência disso, e sem dar o devido crédito a quem raspou os lápis primeiro, não é fixe. Se admiram o trabalho de alguém a ponto de quererem brincar com ele, tipo legos, escolham a primeira opção. O pior que pode acontecer é o sujeito da vossa admiração começar a chorar por lhe terem roubado o Coelho e no final, ficam amigos para o resto da vida, é ou não é verdade, Inês?

Desculpa lá qualquer coisa, o teu Coelho continuava a ser o mais bonito.



Daniela. 

5 comentários:

  1. Adorei a publicação porque é mesmo isto. Não tem mal nenhum retirarmos ideias de outros sítios, seja para a escrita ou para a fotografia, como referes. Desde que não assumamos que a ideia é nossa, desde que não usemos o trabalho e a criatividade dos outros como nossos.
    Já escrevi publicações pelo blogue sobre temas que li noutros, mas lá está, desenvolvi-o do meu jeito, com a minha opinião, com a forma como os meus olhos vêem o mundo. Aliás, para mim, uma das melhores coisas é sermos inspirados por outros e inspirarem-se em nós. Tudo isso é diferente da cópia, do famoso plágio.
    Beijinhos

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  2. Somos inspirados todos os dias por algo e/ou por alguém. E isso é maravilhoso. Quando tudo é feito com clareza, pode ser uma bela forma de homenagem e de valorização do trabalho alheio. Agora, tem é de existir verdade e consciência de que, se aquela ideia não é nossa, temos que deixar clara a autoria. É tão mais saudável assim

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  3. Gostei imenso da forma como abordaste o tema, de forma simples mas assertiva.

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  4. Lindo! Tanto pelas palavras como pelas fotografias!
    No meio deste tema acho que o mais dificil é mesmo a questão de dares por ti a criar algo semelhante ao de outra pessoa. Acontece-me com bastante frequência e ainda não sei lidar com a coisa de outra forma sem ser largar o que estava a fazer e deixar a outra pessoa ficar com os créditos. Apesar de no fundo sabermos que mentes semelhantes funcionam da mesma forma e consequentemente podem produzir conteudo parecido, não é assim visto na maioria das vezes.

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  5. Adorei o texto! De facto... parece às vezes que já foi tudo inventado... mas pode-se sempre dar um toque pessoal... e reinventar... por exemplo, no meio musical... uma música, pode ter N interpretações... mas às vezes, uma interpretação, até poderá ser tão boa, que quase nos faça esquecer a versão original... e isso... também tem o seu valor!...
    Beijinhos
    Ana

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Palavreiro(a), vai em frente, partilha connosco as tuas palavras :)