DesmistificARTE | Tatuagem sem máquina?!

07 fevereiro 2019

Há já uns meses que andávamos a ruminar nesta ideia, e há outros tantos que o Miguel aceitou embarcar connosco. Quem nos conhece de outras bandas, sabe que o Palavra-padrão é o nosso pretexto para reflectir e partilhar pontos de vista sobre ideias, conceitos e práticas, e que a missão que assumimos aqui é também um bocadinho levantar o véu que ainda encobre algumas coisas mais sujeitas aos bichinhos carpinteiros dos juízos de valor.

O DesmistificARTE vem nesse sentido, de praticarmos a arte de destrançar mitos e pré-conceitos, e começamos com as tatuagens (e com uma técnica bem especial)... pela voz do Miguel.

"Olá, sou o Miguel Pipa, nasci em Vila do Conde em 1980.
Não tenho qualquer tipo de formação académica por opção, estudei só até onde me obrigaram.
Gosto muito de tatuar, de construir instrumentos e tocar. O noise e a música experimental são as minhas maiores paixões. Cativa-me qualquer tipo de trabalho manual, seja pintura, colagens e remodelar constantemente o espaço onde habito.
Nos últimos 4 anos, dediquei praticamente todo o meu tempo à criação de um espaço que é um laboratório de experimentação de diferentes expressões artísticas.
Lavo a minha roupa à mão com detergente que eu próprio faço.
Gostaria de visitar o Japão e de alguma maneira fundir o kintsugi* com tatuagem."

* Segundo a nossa amiga Wikipedia, é a "arte japonesa de reparar uma cerâmica quebrada com laca espanada ou misturada com pó de ouro, prata ou platina". Vejam aqui alguns exemplos!

Antes de embarcar na entrevista, espreitem lá o trabalho do Miguel em Infinite sun handpoke tattoo

Todas as fotos desta publicação foram amavelmente cedidas pelo Miguel (e por nós editadas)


Quando e como é que começaste a tatuar? Lembras-te da tua primeira experiência?

Primeiro, tenho que explicar como surge o meu interesse pela tatuagem. Cresci nas Caxinas e sendo a maior comunidade piscatória do país, tinha alguns familiares e conhecidos que já traziam nos corpos tatuagens feitas nessas viagens mundo fora, algumas com máquina e outras à mão, desde as sereias, ancoras, a datas de nascimento...
Mas a memória mais bonita que ainda tenho e que guardarei para sempre, é o braço da minha prima, que de forma muito tosca e num tamanho engraçado escreveu o seu nome OLÍVIA. Foi a primeira rapariga tatuada que conheci, isto por volta de 1988, tatuagem feita com alfinetes e não faço ideia que tinta usou, mas aquela tatuagem cumpriu a sua verdadeira função: a liberdade de fazer o que quero com o meu corpo.
O universo da tatuagem sempre me interessou e era algo que  gostaria de experimentar, ser tatuado e tatuar.
Quando tinha idade legal para o fazer, não era possível encontrar um espaço em Vila do Conde, só no Porto, e não tinha condições financeiras para tal. Esse factor também me despertou mais o faz tu mesmo, filosofia que exploro exaustivamente.
Mas foi em 2003 que peguei em agulhas de acunpuntura, um pedaço de linha e tinta da china (pelikan) e dei início ao labirinto que tenho no braço esquerdo. Fiz as primeiras linhas e comecei a praticar. Desde aí até hoje ainda não consegui parar, praticamente em todas as zonas do meu corpo a que tenho acesso experimento.

A auto-tatuagem é um momento que repito constantemente e uma prática que me deixa bastante feliz.
Tatuar outras pessoas surge logo depois, em amigos que oferecem a sua pele sem estarem muito preocupados com o resultado final, mas mais com que a minha vontade de tatuar crescesse, fico eternamente agradecido a todos eles.


Uma das minhas maiores curiosidades em relação a este tema é saber qual a sensação de fazer algo tão definitivo em alguém... Quando começaste, ou mesmo agora, alguma vez tiveste presente essa pressão de que é algo que não se pode apagar? E isso leva-me a outra questão, é assim mesmo tão definitivo ou atualmente já existem alternativas viáveis, acessíveis e seguras para eliminar uma tatuagem?

A sensação que tenho desde o início é que depende sempre da pessoa que está à minha frente. Tenho a grande responsabilidade de a ver feliz com o resultado do desenho a que me propus passar para a sua pele, tendo sempre em mente que nada é assim tão definitivo, pois um dia deixaremos este corpo.
Mas enquanto estamos vivos, sim, existem pessoas mais perfeccionistas, outras mais naifs, as que se arrependem de algo que tatuaram e as que não. Cada vez mais tenho noção que a forma como pintas a tua pele revela muito da tua personalidade, e somos muitos e muitas personalidades diferentes, que bom! Hoje em dia já existem métodos de remoção a laser, ainda não vi nenhum resultado em pessoa, só no virtual, mas não sou muito a favor da prática, não me inspira muita confiança. Existem também muitas pessoas que voltam a tatuar por cima ou acrescentando algo à tatuagem antiga, criando um novo desenho que as deixa mais felizes.



É frequente a associação da palavra Arte(s) à pintura, ao cinema, à literatura, ao teatro e outras manifestações que passam por um processo de criação, por parte do artista, e de receção do públicos ..Na tua opinião, a Tatuagem está incluída neste grupo? Deve ser considerada uma Arte?

Sim sem dúvida alguma! Desde as tribos até aos dias de hoje.

E isso levanta-me outra reflexão, o tatuador é um artista? É curioso pensar que tanto o pintor como o tatuador desenham, pintam e criam, mas nos discursos do dia a dia, é raro as pessoas dirigirem-se ao tatuador como artista... Por que achas que isto acontece?

Para mim todos somos artistas, é preciso muita arte para saber viver frente à realidade. Requer muita prática e persistência. É possível que algumas pessoas ainda só as vejam como mero adereço decorativo e nem pensem na arte do tatuador,mas isso é problema delas.

Pelo que andei a ler por aí, o número de tatuadores autodidatas é bastante elevado. O que achas sobre isto, a prática de tatuar é algo que se aprende com formação, é um talento natural, é uma questão de treino? Qualquer um pode ser tatuador? E no caso de achares que não, o que é preciso?

Aprendi sozinho, ainda não conheci ninguém pessoalmente que faça handpoke** para conversar e trocar experiências. Mas acima de tudo, é uma questão de teres curiosidade e quereres muito tatuar. Hoje em dia também é muito mais simples arranjar os materiais necessários para a prática. Quando iniciei, foi onde encontrei a maior dificuldade, reunir todo o material, nessa altura por cá não existiam grandes fornecedores. Agora também existem muitos cursos para aprenderes a dominar a técnica e manusear material etc. Mas treino, muito treino e em pele real,existem peles artificiais mas
achei muito ridículo e não tem comparação. Só a prática em pele humana te faz evoluir.
Em relação ao talento natural também já vimos que quando tem que ser é.

(** A handpoke tattoo é a especialidade do Miguel - e que bem que a domina! Para quem não conhece, trata-se de uma forma mais "primitiva" de tatuar, regressando às origens da agulha, sem utilização da máquina.)

Li também uma notícia em que dizia que na região Norte estima-se que existam cerca de 900 (900!!!!) tatuadores, que ultrapassam em muito o número de estabelecimentos declarados (são apenas algumas dezenas)... Isso quer dizer que temos centenas de gente com uma pistola comprada no Olx a trabalhar debaixo do tapete... O que achas sobre isto? Quais os impactos que isto tem para a profissão de tatuador?

Não fazia ideia que somos assim tantos. Aqui batemos numa problemática recorrente seja em que área for, muitas das vezes o exagero de burocracia que alimenta este país torna a coisa complicada. Acompanho uma realidade geracional de precários e sem condições financeiras que criem estabilidade para poder investir e ter um espaço legal aberto ao público. É bastante complexo este assunto,conheço diferentes pessoas de diferentes áreas e será fácil fazer um simples exercício, nem todos os fotógrafos têm um estúdio, artistas plásticos galerias, músicos salas de concertos e por aí...
Tentei algumas vezes me associar a espaços já abertos, mas o feedback não tem sido muito positivo, isso está a fazer com que cresça a vontade de abrir um espaço inteiramente dedicado ao handpoke, com outras pessoas que o façam para dividir despesas. Ainda não faço disto profissão mas espero num futuro estar a tatuar em cima de um tapete muito bonito. Fico muito feliz pelos tatuadores que conseguem abrir um espaço e rentabilizá-lo de forma legal.



Sei que tens uma particularidade nesta área, que é a técnica de handpoke. Queres falar-nos um pouco sobre isso? Na tua opinião, por que razão as pessoas começam a procurar uma alternativa mais "medieval" (digo-o na melhor das intenções!) à forma comum de tatuar?

Amo tatuar sem máquina, ou seja, handpoke . A técnica consiste em usar uma agulha e tinta e, ponto a ponto, ir fazendo o desenho crescer e ficar sólido debaixo da pele. É um processo bastante lento e que requer muita paciência de ambas as partes, para quem a faz e para quem a recebe. Cada vez mais somos curiosos e ainda bem, ao existir a possibilidade de serem tatuadas sem máquina mais pessoas começam a querer experimentar e o movimento vai crescendo.
Gosto do resultado final, acho que o handpoke tem uma personalidade bastante bonita, não pode existir comparação com os outros métodos, pois não faz sentido. Mas só fazendo uma tatuagem à mão é que as pessoas vão entender a linguagem. Todo o material que utilizo é descartável e seguro, só não utilizo a máquina. Mas quem quiser perceber melhor e de forma mais esclarecida, que entre em contacto directo comigo e terei todo gosto em conversar com ela. 

A pergunta incontornável para os(as) medricas como eu, quão mais doloroso é do que uma tatuagem normal?

A dor é uma coisa muito relativa, cada vez mais aprendo isso. Tenho pessoas que já adormeceram enquanto estavam a ser tatuadas, sonharam e tudo! Ao ser ponto a ponto faz com que a dor não seja tão intensa, tento sempre ser o mais delicado possível para que a pessoa tenha uma boa experiência, e não um momento traumático. Para já, na maior parte dos casos, quem tem experimentado diz que dói menos. Pessoalmente gosto da dor que a tatuagem cria, para mim só faz sentido assim, nunca usarei qualquer tipo de anestesia e, sim, a dor é sempre temporária.



Aqui há tempos dava uma notícia sobre uma exposição numa galeria em Lisboa que consistia em ter uma série de tatuadores no local a recriar obras de arte no corpo dos visitantes (mediante pagamento, é claro). A pessoa que estava à minha beira comentou que era ridículo pois aqueles desenhos não tinham qualquer simbologia para a pessoa que as ia tatuar para a vida. O que pensas sobre isto? Consideras que existe  uma "imposição" da ideia da simbologia sobre a estética no que diz respeito à tatuagem? Ou o oposto? Achas que mais gente procura tatuagens pela parte estética do que pela simbologia?

No fundo é sempre um acto simbólico sendo estético, e vice versa. Ainda temos muito que aprender sobre a liberdade individual, opinar acerca do outro é, no fundo, um tique nervoso que afecta muita gente. Pesquiso bastante, diariamente, e cada vez tenho mais noção da salgalhada mental em que vivemos, tatuamos de tudo no geral, não te consigo responder com precisão.
Já tatuei símbolos, flores, animais, formas geométricas e espero continuar, não tenho interesse em ficar só num dos temas, quero mesmo explorar esta salgalhada.

E quanto ao preconceito para com as pessoas tatuadas? Achas que ainda é uma realidade?

Muito menos felizmente, aí temos que agradecer aos cantores Pop e aos jogadores da bola! Muito obrigado!

Muita gente fala que as tatuagens viraram uma moda. Concordas com isso? Achas que isto é algo  cíclico, que de repente vai passar, ou pelo contrário, que se trata de uma valorização crescente das formas de personalizar o corpo dando voz aos interesses e características de cada um?

Como existe menos preconceito, ajuda para que mais e mais gente tenha finalmente coragem para as fazer sejam elas estéticas, carregadas de simbologia ou desenhos dos filhos.Vai crescer, felizmente e passaremos a respeitar um bocadinho mais as características de cada um.

Para as pessoas que nunca fizeram uma tatuagem, quais são os principais conselhos e sugestões que tens para dar?

Se tiverem curiosidade experimentem. Que encontrem um tatuador com que se identifiquem e não tenham pressa. Sugiro só que tenham atenção às questões de higiene.

Partilha lá connosco as experiências mais cómicas que o mundo da tatuagem te proporcionou...

Cómico, cómico foi tatuar o meu próprio braço durante horas numa posição e depois por o braço direito e ver que ficou tudo torto 🙂

Por fim, para terminar de uma forma que já é costume cá no palavra-padrão, se pudesses descrever a sensação de tatuar (e se tatuado, caso queiras acrescentar!) numa palavra, qual seria?

Responsabilidade.

E pronto, chegamos ao fim desta interessante conversa!
O que vos parece? Partilhem lá as vossas opiniões sobre o tema, somos todos ouvidos! :-)

12 comentários:

  1. Nesta como em tantas áreas, existe ainda muito preconceito a ultrapassar. Tanto é, que nalgumas profissões não são admitidas pessoas com tatuagens.
    Eu acho feio uma pessoa coberta de tatuagens, mas isso é um problema meu e não dessa pessoa.
    As minhas filhas têm uma tatuagem igual, feita a partir duma foto, ficou lindíssima.


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  2. Esta conversa é fascinante! Adorei ler. E como quero imenso fazer tatuagens, fez-me todo o sentido conhecer cada detalhe *-*
    Confesso que desconhecia esta técnica, mas fiquei bastante curiosa

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  3. That girl is wearing her heart on her sleeve. And the other one "has a fire starting in her heart"..quoting Adele. ahaha
    Olhem gostei muito. Gostei muito de conhecer um bocadinho tao significativo do Miguel. Considero as tatuagens um tipo de arte, por serem uma ótima forma de expressão e pelo poder de afirmação e independência que concedem a cada pessoa que opta por ser tatuada. Dito isto continuem com o excelente processo de trazerem conteúdo tão caloroso ao vosso cantinho tão agradável. beijinhos Rosa Limão

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  4. Desconhecia por completo essa técnica, acho que nunca arriscaria numa coisa assim mas é sempre bom aprender uma coisa nova. ☺️

    MRS. MARGOT

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  5. Adorei ler esta entrevista. Acho que o mundo das tatuagens é mesmo uma arte com direito ao mesmo valor que outras têm, é incrível! Além disso, fiquei a saber mais uma coisinhas :)

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  6. omg!! estou a amar-vos neste momento!!!! eu e os meus amigos temos falado tanto sobre isto nos intervalos das aulas!! "acho que o handpoke tem uma personalidade bastante bonita" verdade, verdade, verdade!!! :)

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  7. Adorei ler a conversa! E as fotografias estão lindas, que tatuagens de sonho!
    Beijinho, Ana Rita*
    BLOG: http://www.margheritablog.com/ || INSTAGRAM: https://www.instagram.com/rititipi/ || FACEBOOK: https://www.facebook.com/margheritablog/

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  8. Adoro o traço e simplicidade. As duas últimas respostas são qualquer coisa!

    Acho curioso que pelo menos à uns oito anos atrás, enquanto morava em Portugal ainda era bastante grande o preconceito em relação a pessoas tatuadas. No entanto, comparativamente à Holanda - conhecia por ser um país tão na boa e liberal, não só há mais Portugueses tatuados, como com muitas mais tatuagens. Quando me mudei para cá senti-me um pouco estranha por ter tatuagens e piercings, mesmo não tendo metade dos olhares de lado que recebia em Portugal.

    http://pt.witkonijn.net/?zx=5db7eb4baba725fe

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  9. Gosto bastante destes tipo de tatuagens, tão bonitas :)

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  10. Lindo o trabalho dele e muito bacana a entrevista.

    Beijos

    onlyinspirations.blogspot.com

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  11. Adorei a entrevista... e este conceito alternativo, e mais artístico da forma de tatuar!... Mais autêntico, e primordial! Gostei imenso!
    Beijinhos
    Ana

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