ACMA | Tradição é tradição 2/3

21 março 2018

Na esteira da nossa participação no projeto ACMA || A CULTURA MORA AQUI, com o tema "Tradições", resolvemos agarrar no desafio à nossa maneira, escrevendo um conto com umas personagens bem curiosas! Esta é a segunda de três partes (os mais distraídos podem ler aqui a primeira) e votos de umas boas leituras!

Capítulo 2 |

A menina Sofia e o Serginho cresceram juntos, à distância de meia dúzia de portas, e tiveram o feliz (e expectável) acaso de se cruzarem na única escola primária da vila. Se há coisa da qual me posso gabar, ao contrário de qualquer outro presente neste guarda-jóias, é que eu estava lá no começo. Estava realmente lá, na escola, na coboiada com os miúdos, não cuidadosamente pousada numa cabeça cheia de laca durante uma cerimónia de caridade! Não é algo que goste de recordar, mas aqui vai: saí numa revista. Pronto, já disse. E saí não à menina Sofia mas à Gusta, a irmã mais velha do Serginho. Ela comprou a revista com uns tostões oferecidos pelos pais durante uma ida à praia, para ler pelo caminho, e eu, acabadinha de nascer lá na fábrica, vinha muito aconchegada num pedaço de esferovite cor-de-rosa, com a inscrição “GRÁTIS COM A TUA SUPER POP”.

 Tive um início de vida maravilhoso: ia a praia, a dezenas de festas de aniversário, feiras populares e ao cinema. Não era raro ser mergulhada numa nuvem de algodão doce, ou enterrada num balde de pipocas, gomas ou batatas fritas. Nas passadeiras tinha sempre companhia, uma vez que a Gusta era pequena e tinha sempre um adulto a dar-lhe a mão. A mão do anel. (Foi assim que fiz amizade com algumas alianças!) Até que chegou uma altura em comecei a ser deixada em casa mais vezes. A Gusta tinha passado para a escola “dos grandes” e usava brincos com penas verdes, chockers no pescoço e… o Álvaro, um anel que jurava mudar de cor conforme o estado de espírito, vejam lá! Aquele vigarista…
O que é certo é que fui ficando no cestinho dos acessórios da Gusta, até ao dia em que o Serginho entrou no quarto, às escondidas, e me levou.

— Não estou a roubar. Vou só levar emprestado. — Disse em voz alta, convencendo-se a si mesmo do gesto inofensivo. Ao início, fiquei com a pulga atrás do golfinho. Quer dizer, eu até sou um anel moderno, mas não fazia ideia que o Serginho gostava deste tipo de coisas… além disso, ele ia muitas vezes à baliza no futebol e eu não iria gostar muito de andar a levar com a bola…
Mas, no dia seguinte, quando ele me levou para a escola dentro de uma caixinha de chicletes com um lacinho, percebi tudo. 
Foi assim que voltei à boa vida por mais uns anos, até ser novamente substituída, desta vez por, imagine-se, anéis que ocupam mais do que um dedo, como a Luísa e a Linda, irmãs siamesas. O Serginho e a menina Sofia foram amigos inseparáveis durante muitos anos, até que o Zé, um primo em segundo grau, teve de os informar que estavam apaixonados de uma forma muito eloquente: “Ouçam lá, arranjem um quarto, porra!”. Contou-me isto a Maria, mola do cabelo com padrão tigresa, que estava presente no momento, à janela, a apanhar os cabelos rebeldes da vizinha D. Micas.


Sou arrastada das minhas recordações por uma salva de tilintares. Todos os acessórios batem uns contra os outros para produzir um som achincalhado e assim sei que chegou o momento das previsões. Os brincos Manuel e José foram nomeados pelo conselho como candidatos à escolha de uma coisa nova. O colar Élio, com um mostrador em ouro rosado, foi desclassificado da categoria por ter perdido um dos brilhantes quando se envolveu numa luta com um botão. 
A nomeada para a categoria de coisa emprestada foi a Cláudia, a pulseira de uma das damas de honor. O meu coração aperta quando, para uma coisa azul, escolhem o Roberto, um gancho de cabelo esguio com apontamentos em lápis-lazúli. Para uma coisa velha, como seria de esperar, é o Sr. Euristides, corrente de ouro para relógio, que anuncia a nomeação da Sra. Elisabete pela enésima vez. Não houve uma única mulher da família que não cumprisse a tradição de levar a valiosa tiara a segurar o véu. Ela roda sobre si mesma, recebendo a nomeação com uma elegância já treinada. 

A orquestra das pulseiras de prata toca uma sinfonia de tilintares e a cerimónia termina ainda antes da meia-noite, pois amanhã é um dia em grande e os nomeados não podem correr o risco de estar baços de sono. Embora a verdadeira escolha recaia sempre sobre a noiva e família, as nomeações nunca falharam até hoje, e, por isso, eles saem triunfantes em direção aos seus respetivos compartimentos. Eu deixo-me ficar mais um pouco, a espreitar por uma pequena abertura do guarda-jóias onde encaixa a minúscula manivela que faz rodar a nossa bailarina cantante. Não esperava ser nomeada, longe de mim, mas não consigo não sentir uma estranha desilusão. Afinal de contas, foi comigo que tudo isto começou, certo? Por que não haverei eu de ter mais valor do que um berloque qualquer todo xpto que não tem qualquer relação com a história de amor da minha Sofia e do meu Serginho? 
Observo-a a dormir e controlo a emoção de a ver assim, tão crescida. 
—  Uma jóia de menina, esta Sofia. Uma jóia de menina. 


Sobre o projeto A Cultura Mora Aqui

Criado pela Ju, do blog Cor Sem Fim, o projeto A Cultura Mora Aqui - ou ACMA, para abreviar - tenciona trazer a cultura de volta à internet com temas mensais ou bimestrais. Para participarem, só têm de enviar um e-mail com os vossos dados para acma.cultura@gmail.com - não vamos falar sobre outfits, maquilhagem, moda, etc, e qualquer um de vós pode participar, não sendo obrigatório fazê-lo todos os meses. Para não perderem nenhum post, já podem seguir a página do ACMA no facebook e a Revista.


22 comentários:

  1. Ai a Super Pop... Já não me lembrava de ouvir esse nome. Que saudades.

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  2. Que lufada de ar fresco que está a ser acompanhar esta história! Adoro :D

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    1. Ficamos tão felizes, querida Andreia! Sempre fiel leitora! Muito obrigada pelo teu incentivo a este nosso cantinho <3
      Mil beijinhos,

      Daniela

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  3. Este projecto está a ser uma verdadeira delícia.

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    1. Muito obrigada Pedro! Ainda bem que o carinho que pusemos neste desafio está a transparecer para esse lado! :) Boa semana

      Daniela.

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  4. Gosto do jeito de participar com um texto encantador!
    bj

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  5. Ahahah mais um capítulo brutal! Muito bom :D

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    1. ahaha ri-me tanto. Sem dúvida caricato também, o que se passou contigo. :D

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    2. Obrigada Rosa! ^_^
      ahaha histórias caricatas e eu somos best friends forever, não há volta a dar mesmo! xD

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  6. r: Fica na Avenida da República, em Gaia :) tenho que explorar essa alternativa, porque vou pouco a alfarrabistas. Pois, imagino!

    Beijinhos*

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  7. Que bom capitulo cheio de nostalgia
    https://retromaggie.blogspot.pt

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    1. Muito obrigada pelo feedback, Madga! Boa semana!

      Beijinhos,

      Daniela

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  8. Que capítulo tão envolvente. E tão bonito :)

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    1. Boa Inês, esperemos que gostes da leitura! :D

      Beijocas,

      Daniela

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  10. Uau!
    Entrei no blog e senti-me noutro mundo, adoro!


    https://quase-italiana.blogspot.pt/

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    1. Ohh obrigada Joana, que comentário maravilhoso! Queremos mesmo passar um bocadinho do nosso mundo para quem nos lê! :)

      Beijinhos,

      Daniela

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